Toda
bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de
atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou
naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou
se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então a
intenção fundamental referida. A bibliografia se torna um papel inútil, entre
outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas. Essa intenção fundamental de
quem faz a bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos
autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma
simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere,
deve saber o que está sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez,
deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio.
Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros
citados e não só a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas. Estudar é,
realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica
sistemática. Exige disciplina intelectual que ano se ganha a não ser
praticando-a. Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”* não
estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos
educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua
“disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a
indispensável criticidade. Este procedimento ingênuo ao qual o educando é
submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que
fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela
imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é
a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua
compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante
consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio. Numa visão crítica, as coisas se
passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua
totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda. Esta
postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a
ele se dedica:
a) Que
assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto
significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do
texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse
uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”, procurando
apenas memorizas as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma
o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos
que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de
quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico
do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras
dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de reinventar, de
recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não
é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto,
renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser
tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de
adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais
lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quando, na
medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas
dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a
significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais
do texto que, em sua interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá
surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da
obra. A demarcação destes temas deve atender também ao referencial de interesse
do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito
leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões
em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que
trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e
sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o
nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando.
Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua
relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair
o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua
preocupação, deve-se separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha
com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas
circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das
possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do
texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo serio de um livro como
de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu
conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente
inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.
b) Que
o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se
reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros
em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este
enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão
expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e
sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar
certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas
relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de
quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por
torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das
observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples
conversações. O registro das ideias que se têm e pelas quais se é “assaltado”,
não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a
constituir o que Wright Mills chama de “fichas de ideias”**.
Estas
ideias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios
que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase
sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas
ideias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para
seguir em sua reflexão.
c) Que
o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto
possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua
inquietude.
d) Que
o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja
mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica
na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor,
nem sempre o mesmo do leitor.
e) Que
o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição
humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído se encontra
dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do
texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio,
pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá
facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a
necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de
entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi
alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu
desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente.
Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se
mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de
livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir ideias, mas de
criá-las e recriá-las.
[1] Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à
relação bibliográfica que foi proposto aos participantes de um seminário
nacional sobre educação e reforma agrária.
* Sobre “educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do
Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.).
** Wright Mills – The Sociological
Imagination
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